sábado, 28 de abril de 2018

RECICLANDO MEMÓRIAS – PARTE I

Um tema que você não conhece, que nada sabe sobre a mesmo, acaba por levar a um determinado tipo de ignorância que o impede de explorar todas as questões contidas em sua complexidade.

Para melhor explicitar a frase acima pode-se citar como exemplo o livro Flatland[1] publicado no final do século XIX, pelo professor inglês Edwin Abbott (1838-1926) com o curioso pseudônimo A Square (Um Quadrado). Nesse livro, Abbott descreve por meio de uma fabulosa sátira ao período vitoriano, uma sociedade habitada por figuras geométricas que desconhecem a realidade tridimensional. Este mundo plano orienta-se sob rígidas crenças científicas e religiosas que rege o comportamento dos seus cidadãos. Entretanto, um dos habitantes de Flatland, um Quadrado, presencia um acontecimento “sobrenatural” e a partir deste conhecimento ele põe em cheque todo o sistema de crenças daquela sociedade.

Tomando o exemplo da história relatada por Edwin Abbott é que o autor deste artigo sentiu a necessidade de analisar algumas questões que envolvem a reciclagem de materiais, particularmente apontando seus aspectos educacionais, políticos, mas, principalmente a possibilidade de inclusão social de milhares de pessoas que sobrevivem com esse trabalho. Entretanto, longe de uma abordagem acadêmica, o que se propõe aqui é apenas trazer de volta experiências, memórias e ideias de autores que têm analisado os processos e opções relacionadas à reciclagem de material de embalagem. Também, é intenção do autor tentar demonstrar os problemas sociais relacionados com as pessoas envolvidas com a reciclagem, incluindo o leitor.

Finalmente, se não for óbvio, deve ser apontado o duplo significado no título do presente artigo, ou seja, a reciclagem de materiais e de memórias.
Felizmente, e não querendo ser pretensioso, o autor teve a oportunidade de vivenciar e "conhecer" vários países, alguns como EUA, de onde adveio toda a sua formação educacional até o ensino superior e, outros tantos locais onde adquiriu conhecimento adicional por meio de viagens pessoais e profissionais.
Em relação a esses diferentes países e culturas podem ser selecionados alguns aspectos referentes a questão da reciclagem de materiais:


  • EDUCAÇÃO AMBIENTAL NOS EUA
O sistema educacional nos EUA contribui muito para a conscientização sobre a importância da reciclagem de materiais, procurando atingir crianças, jovens e até mesmo a população idosa. Assim, quando a cidade de Royal Oak, no estado de Michigan, EUA, decidiu implementar um programa de coleta de resíduos que permitiria a reciclagem, as autoridades governamentais incluíram um extenso trabalho no campo educacional. Uma lembrança interessante do autor é a de seu pai (na época com mais de 70 anos) explicando como o lixo doméstico deveria ser separado e identificado, antes de ser posto na rua para sua coleta e reciclagem pela prefeitura. A maioria dos detalhes do processo de separação do lixo que foi explicado pelo seu pai desapareceu na confusão de memórias distantes. Mas o fato de que a educação ambiental, mesmo em uma população idosa, é possível, parece muito importante. É claro, cumpre assinalar que a população em geral na cidade de Royal Oak já possuía uma boa educação básica.


·         PROGRAMAS DESENVOLVIDOS PARA RECICLAGEM: EUA E BRASIL

1-    Depósito de devolução: Michigan foi um dos primeiros estados a implementar um depósito reembolsável em contêineres de bebidas. Na época (provavelmente no final dos anos 60), foi fixado em 10 centavos de dólar cada recipiente, o que provocou grandes protestos de muitos dos empacotadores e consumidores. A intenção primária do estado não era apenas de promover conscientização ambiental ou de sustentabilidade entre a população. mas sim de reduzir os custos gastos pelo departamento da rodovia estadual de Michigan, limpando as margens das estradas. Antes do plano de depósito de reembolso ser implementado, as latas e garrafas de cerveja simplesmente não valiam nada, o que levava a população a se desfazer das mesmas, jogando-as em qualquer lugar do estado e a qualquer momento.

2-    Depósito de devolução: Nova York, Queens Borough possui uma população muito eclética, não apenas em relação à classe social e educação, mas também à nacionalidade e às tradições culturais em geral. Este autor viveu em vários bairros do Queens durante a última década. Constatou que existia um sistema público para coleta de lixo orgânico, separado do lixo reciclável. Além disso, existia um sistema para o reembolso de depósitos de embalagens de bebidas, como o que existe em Michigan, presente em todo o estado de Nova York. A maioria dos supermercados possui equipamentos de compactação para recipientes de vidro, plástico e metal, que recebem o material, reduzem o volume e, ao final, emitem um cupom que pode ser trocado por dinheiro dentro da loja. Era fácil ver que muitos desabrigados ou pobres aproveitavam esse sistema de reciclagem para conseguir dinheiro, revirando o lixo nas ruas, antes dos caminhões de coleta regulares passarem pelas mesmas, completando suas rotas. Este autor "doava" suas garrafas e latas para os menos afortunados que ficavam em filas para despejar suas garrafas e latas nas máquinas de reciclagem e conseguir cupons para reembolso. As doações foram sempre bem apreciadas.

3-    Depósito de devolução: Durante a década de 1960 e 1970 no Brasil, existiam apenas alguns tamanhos de garrafas de vidro para cerveja e refrigerante. Era cobrado pelo vidro um depósito em dinheiro, valor esse que era restituído quando o vasilhame era devolvido no supermercado ou no local onde fora comprado. Ninguém iria simplesmente "jogar fora" uma garrafa de cerveja. Obviamente, problemas significativos de lixo deste tipo de garrafa não existiam. Por razões comerciais e possivelmente ambientais, ao longo do tempo, as “grandes” garrafas de cerveja e refrigerante foram eliminadas, geralmente substituídas por garrafas descartáveis (não destinadas a serem recicladas) feitas de vidro ou PET. Certamente pode-se afirmar que os custos ambientais para devolver e lavar as garrafas devolvidas compensavam o uso de garrafas descartáveis. Nenhum depósito era necessário, e o material de embalagem não tinha valor pecuniário intrínseco e, portanto, era simplesmente jogado no lixo, ou eventualmente separado para reciclagem, se a pessoa que bebesse a bebida fosse ambientalmente responsável e contasse com um sistema de reciclagem funcional e disponível. Este escritor não estudou o custo/benefício ambiental ou o estudo do ciclo de vida e os resultados dessa transformação no Brasil do sistema de “retorno” para o sistema “descartável”. Entretanto, um “desabafo”: a falta do valor em garrafas PET pode ser um bom tema para algum blog futuro. Latas de alumínio são uma história separada, mais importante. Mesmo antes da implementação de garrafas de vidro descartáveis, as latas de alumínio entraram em uso popular. Não era exigido depósito quando a bebida era comprada. No entanto, devido ao valor intrínseco do alumínio, essas latas de bebidas possuem um valor comercial. Também, os aspectos ambientais positivos dos recipientes de bebidas de alumínio foram geralmente considerados significativos, quando comparados com a logística e os custos envolvidos com as garrafas de vidro mais tradicionais. Basta dizer que mesmo hoje no Brasil, é muito comum as latas de alumínio serem coletadas e recicladas, enquanto as garrafas de vidro são deixadas de lado. Mas aqui, cabem algumas perguntas: Os aspectos ambientais dos recipientes de bebidas de alumínio foram considerados positivos “por quem”? Eles são convenientes “para quem”? Eles são melhores “para quem”? As respostas a essas perguntas são importantes, mas não é possível analisá-las dentro do escopo dessas memórias.

4-     Depósito de devolução: Recentemente no Brasil, os depósitos nas latas e garrafas de cerveja e de refrigerante estão voltando à prática comercial; exceto para embalagem PET. Aparentemente, é uma mudança positiva, no entanto, ainda há o problema de que alguns tipos de garrafas de bebidas têm um valor monetário significativo e outros não, e essa diferença não é bem identificada, o que implica na necessidade de educação ambiental. Hoje, muitos usuários não sabem que às vezes estão “jogando fora” garrafas que têm um valor comercial intrinsecamente mais alto. Alumínio e até certo ponto "lata" ou latas de aço são mais valorizados no Brasil. O valor comercial deste material é bem percebido pela população em geral.
Ao terminar essa análise não é demais acrescentar que muitos temas, como a reciclagem de materiais, contém uma gama complexa de questões e implicações que precisam ser analisadas em seus múltiplos aspectos para que se possa ter uma melhor compreensão do tema. Como a exemplo do livro Flatland, citado no início do artigo, a descoberta de outros aspectos da realidade acabou por colocar em cheque todo um sistema de crenças daquela sociedade. Por essa razão ao abordar o tema reciclagem será preciso considerar a interação entre os aspectos técnicos, ambientais e sociais que nem sempre são bem compreendidos.

Na segunda parte do artigo, serão abordados alguns exemplos mais recentes e relacionados a situação e destino de lixo no Brasil e nos EUA.


Autor: David Charles Meissner


É dono da DCMEvergreen – Environmental Consulting Services.

Formado em Química na Michigan State University, East Lansing (Mi USA)

Mestrado em Química Orgânica pelo ITA-CTA, S.J. dos Campos, SP – Brasil.



[1] ABBOTT, Edwin A. Planolândia; um romance de muitas dimensões. Trad. Leila de Souza Mendes. São Paulo: Conrad, 2002

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